Stairway To Heaven: Por que é o melhor rock já escrito?
"Stairway
To Heaven" é um clássico - inquestionável. A música foi um hit
avassalador na década de '70 e continua impressionando hoje em dia mesmo
aqueles que não se consideram apreciadores de Rock. Alguns, mais
atentos, dedicam alguma atenção a letra e frequentemente não entendem o
que a banda quis dizer. Vamos contextualizar as coisas antes de abordar o
texto da canção. Quando questionados, os autores só contribuiram para
ampliar a aurea de misticismo ("as palavras vieram sozinhas, não mudei
nada", "os dedos de Page começaram a se mexer", "não sei estavamos
chapados", "vocês falam como se ela fosse grande coisa", etc).
Não
é segredo, "conspiração" ou fato muito desconhecido o fato de Jimmy
Page ser um "ocultista". Na época em que a música foi composta ele
morava na famigerada e infame mansão de Aleister Crowley, Boleskine,
além de ser proprietário de uma livraria especializada em ocultismo, The
Equinox Booksellers and Publishers. Jimmy Page sempre foi um estudioso
sério de ocultismo, não um fanfarrão criando uma pose de "satânico", e é
certo que isso se reflete em sua composições. Nunca foi membro formal
da Ordo Templi Orientis ou qualquer outra ordem (até onde se sabe),
porém é importante salientar que "Stairway to Heaven" é um termo para se
referir aos graus destas ordens onde o iniciado "sobre a escada para a
iluminação"(ordens como Golden Dawn, Rosacruz, etc), a scala
philosophorum. Procurar uma mensagem "satânica" (no sentido vulgar)
levou muitos a incorrerem no erro na hora de interpreta-la, criando
interpretações não muito coerentes e adequadas para conspiracionistas
cristãos - alias, é o mesmo que resumir Aleister Crowley a uma espécie
de figurão "adorador do diabo", quando foi, além de um iconoclasta e um
polemista excêntrico, um estudioso assiduo de tradições orientais.
Gravuras do Encarte
Na
capa temos um quadro dependurado numa velha parede deteriorada onde
aparece um velho curvado sob o peso de um grande feixe de lenha amarrado
às suas costas, usando uma bengala para se apoiar. Dentro temos a
gravura uma aldeia ao longe e uma montanha pela qual sobe, rastejando,
um homem em direção ao pico, onde se levanta uma figura de túnica e
capuz, tendo numa das mãos um bordão, e na outra uma lanterna onde
brilha uma estrela hexagonal. Essa figura, o elemento mais óbvio da
gravura, é a do Eremita, nono arcano maior do tarot.
Ele usa uma túnica representando o conhecimento do oculto, o seu bordão
representa a prudência e a lanterna a sabedoria, representa "fidelidade
a sí mesmo e sabedoria" e "o valor do conhecimento adquirido à custa de
trabalho ininterrupto, que apenas mentes privilegiadas conseguem
desenvolver" (como diz a música, "a new day will dawn for those who
stand long". "To be a rock and not to roll"). O hexagrama, por sua vez, é
o Hexagrama de Salomão, o hexagrama alquimico, a "estrela dos magos".
Formada por dois triangulos superpostos, representa a união do humano
com o divino, a capacidade de transfomar a realidade segundo a própria
Vontade.
Letra
"There’s a Lady who’s sure,
All that glitters is gold,
And she’s buying a Stairway to Heaven"
A
dama é Yesod, o Fundamento, o impulso primordial que nos faz buscar o
auto-conhecimento, subir a "Escadaria de Jacó" (que é representada como
uma escadaria para o céu, "por coincidência"). Este símbolo é em outras
mitologias Isis, Venus, Afrodite..... estas que também são identificadas
com o Anjo da Luz, Lùcifer. A Lady vai contra a concepção de que "nem
tudo que reluz é ouro" e acredita que tudo possui um brlho, uma centelha
divina com potencial de crescimento - e assim ela vai subindo a escada.
A "Escada de Jacó", na Cabala, é escada da consciência do ser humano,
do mais profano ao mais divino, até alcançar a realização.
A
pretensão de que "o que brilha é ouro" vem da alquimia - tudo tem
potencial de virar ouro, que seria o elemento primordial. Até o carvão
tem o seu brilho. Transformar o chumbo em ouro, o homem em Deus. Se
trata de uma concepção gnóstica da vida, o "ouro" representa o pneuma
divino (a centelha divina) que está aprisionado no âmago do ser pela
moral, pela razão e pela matéria em sí. E um dos símbolos da alqumia é
justamente uma mulher segurando um escada para o céu (vide Fulcanelli,
Le Mystère des Cathedrales, ed. J. P. Pouvert, Paris, 1964 pag. 32-33
Pranche II), que é o caminho para a felicidade plena, caminho que ela
constrói com o próprio esforço(buy), porém é um escada, existem degraus
que devem ser subidos pacientemente (o trabalho hermético é gradual). A
já citada scala philosophorum.
"When she gets there she knows,
If the stores are all closed,
With a word she can get what she came for."
Aqui
está o verbo, a "palavra perdida", o magista tem a capacidade de
manifestar sua Vontade com uma única palavra, de, como Deus, conseguir o
que desejar. Para a alquimia as palavras existem um nível simbólico,
são muito mais do que uma forma de comunicação - a própria existência é
condicionada pelas palavras, "se você para de falar para de pensar". A
Vontade, ou Thelema, do magista é tão forte que ele sabe que vai
conseguir o que quer mesmo que "todas as lojas estejam fechadas", mesmo
que as possibilidades pareçam nulas. Ela sabe o que quer, o caminho que
está trilhando, onde quer chegar, por isso "sabe" que vai chegar lá.
Na
mitologia gnóstica, o mundo foi criado por um "deus mal" (Demiurgo) que
aprisinou as partículas divinas na matéria. Quando morre o homem poderá
se liberar, transpor a matéria, porém para isso ele precisa saber uma
"palavra-chave", se ele errar, volta para a matéria. No caminho
hermético cada "degrau" tem uma "palavra-chave", que é sua força, sua
Vontade.
"There’s a sign on the wall,
But she wants to be sure,
’cause you know sometimes words have two meanings."
A
dama precisa tomar cuidado, todo símbolo tem mais de um significado, e
como já dissemos, as palavras são mais que um mero instrumento de
comunicação. "Cuidado com aquilo que desejas, pode conseguir". Para a
alquimia existe uma "segunda linguagem", superior, maior, e o que
fazemos é usar a linguagem mundana para representa-la (o "Ouro"). Aqui
falham os crentes e ateus que com suas visões unilaterais pensam em
deuses como seres existentes no mundo fisico, não como símbolos, imagens
que representam elementos e potencialidades da humanidade, assim como
seu aperfeiçoamento (vide a análise de Feuerbach sobre a religião). O
iniciado não pode cometer esse tipo de erro, incorrer na falsidade e se
desviar do caminho. Isso é, praticamente, uma lição para todos.
"In a tree by the brook
There’s a song bird who sings,
Sometimes all of our thoughts are misgiven."
A
Àrvore da Vida da Cabala, a Yggdrasil nórdica..... Na alquimia, assim
como na Goétia de Salomão, fala-se muito da "linguagem dos pássaros" -
mais uma vez a "Linguagem Superior". O pássaro é o símbolo de Toth (Deus
da Sabedoria), o "criador do Tarot" segundo Crowley (brook é um termo
utilizado para se referir a um fluxo de cartas em uma tirada), que
orienta o viajante no caminho. Para o gnóstico a inteligência é outra
criação do Demiurgo, por isso ele busca sabedoria espontânea dentro de
sí mesmo, procura se guiar pela intuição (runas, tarot, etc).
"There’s a feeling I get when I look to the west,
And my spirit is crying for leaving."
Nesse
trecho muitos aludem ao fato de que nos rituais satânicos volta-se para
o oeste, porém ninguém explica o porque, soltam um fato aleatório e se
impressionam com o "eminente satanismo" da banda, porém ocorre que até
onde se sabe Page nunca fui um entusiasta do satanismo de LaVey (ao
contrário dos Stones) talvez justamente por ser mais tradicional. Nas
ordens já citadas e em tantas outras, o "Oeste" representa o portal do
templo, o mundo exterior, material, Malkuth, já o Oriente o nascer do
sol, a luz (não é a toa que Cristo é referido em alguns trechos das
escrituras como "Oriente"). É bom lembramos que na gnose a morte é a
libertação, e o oeste representa a morte (dizer que é "oposto" a Cristo é
complicado, porque no satanismo é Lúcifer que corresponde ao Leste;
Lúcifer é "Apolineo", racional, iluminado, esclarecido, a criação, Satan
é "Dionisiaco", a escuridão representando as forças da nossa escuridão,
as paixões, o impulso, a rebelião, a destruição).
"In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking."
Anéis
de fumaça representam os ancestrais, a sabedoria ancestral, com
especial ênfase na tradição xâmanica onde o fumo é praticamente um ato
contemplativo (nota: o tabaco é apolineo, racional, masculino; a maconha
é dionisiaca, criativa, femnina) - bebe do conhecimento ancestral.
"And it’s whispered that soon if we all call the tune
Then the piper will lead us to reason.
And a new day will dawn for those who stand long,
And the forests will echo with laughter.
(entra a bateria)
If there’s a bustle in your hedgerow,
Don’t be alarmed now,
It’s just a spring clean for the May Queen."
Estátua de Pã encontrada em Pompéia - fonte: wikipedia
Aqui
temos uma alusão óbvia a Pã, "o flautista". Aleister Crowley compôs uma
poesia chamada "Hino a Pã" em 1929(que foi traduzda por um famoso
ocultista português, porém não famoso como tal e sim como escritor -
Fernando Pessoa), que trata o caminho da Iluminação através da Árvore da
Vida, representada pelo Arcano Diabo do Tarot. Aqueles que persistem em
sua Vontade verão "um novo dia nascer", e os ancestrais irão se
regojizar com o sucesso do iniciado (e de toda a humanidade se
possível).Depois temos a simbologia da superação do Inverno
pela Primavera - acaba o frio e a esterilidade, vem as flores e
fertilidade. Fala também para você ter uma visão cósmica das coisas, ter
perspectiva, não se importar com as pequenas trivialidades que serão
arrebatadas pelo processo cósmico. A derrota numa batalha não é o fim da
guerra, um "não" não é definitivo - um novo dia irá nascer para aquele
que persiste em sua Vontade.
"Yes there are two paths you can go by,
But in the long run
There’s still time to change the road you’re on."
Dois
caminhos, a mão esquerda e a mão direita. A luz e a escuridão, a
normalidade ou o excepcional. A escolha é feita a todo momento e sempre
há como mudar de caminho, de decidir, de direcionar a própria Vontade
(ao invés de se resignar). A questão aqui é existencial - não importa o
quanto você já persistiu num caminho, você é LIVRE para muda-lo.
"And it makes me wonder."
A
frase é utilizada várias vezes. É o arcano do louco, o redescobrimento
do mundo (dos símbolos), a transformação do chumbo em ouro, o sentimento
que a criança tem ao conhecer (“Vinde a mim as criancinhas”, Mateus
18:1-6), o alqumista em subir mais um degrau.
"Your head is humming and it won’t go,
In case you don’t know,
The Piper’s calling you to join him."
Aqui
a lady chama o ouvinte, a música o guia pela Árvore da Vida em direção à
Luz. Eis o poder da música. E esse trecho vem logo depois da mensagem
existencial de liberdade - é como Sartre disse, não importa o quanto
você fuja, a responsabilidade de ser livre recai sobre você, "o ser
humano foi condenado a ser livre".
"Dear Lady can you hear the wind blow, and did you know,
Your stairway lies on the whispering wind"
Na
Yggdrasil repousa um dragão em sua base e uma águia no topo que bate as
asas produzindo uma leve brisa (Águia, sabedoria, espirito iluminado,
força). Na Árvore da Vida da Cabala, o caminho que conduz à "Deus"
(Kether), é representado pelo "AR". É interessante também observar as
grandes coisas que construimos em cima de "ar"(como o amor), a Vontade
que constrói uma escada sem tijolos. Viver no nível do simbólico é
transcendental.
(solo)
"And as we wind on down the road,
Our shadows taller than our soul,"
No
ocultismo (especialmente no amado Crowley) as "sombras" são aspectos
negativos da nossa alma que nos atrapalham na realização de nossa
Vontade, vicios. As sombras do homem são as coisas que ele criou mas que
ele adora como num fetiche, como seus deuses ou o dinheiro - o dinheiro
é uma sombra nossa e não nossa essência, mesmo assim alguns vivem para o
dinheiro e esquecem de sí próprios, do auto-aperfeiçoamento, do amor,
etc; os deuses mais ainda, são sombra de nossa essência, devem ser
entendidos como tal, não devemos adorar as sombras (como fazem os presos
na caverna de Platão). Como disse Karl Marx, sobre a alienação (seja
religiosa ou econômica): "Quanto mais o homem adora algo fora sí, mais
perde de sí mesmo".
"There walks a lady we all know,
Who shines white light and wants to show
How everything still turns to gold,"
Aqui
a Lady realmente se parece com aquele chamado Lúcifer, a luz que nos
guia na possibilidade de transformar tudo em ouro. Deus não queria que o
homem comesse o fruto do conhecimento do bem e do mal porque assim os
homens seriam como Ele - teriam consciência do bem e do mal assim como
de sí mesmo (como vemos ao perceberem que estão nus). Se tornariam como
Deus através do conhecimento (o fogo que Prometeu rouba dos Deuses), e
Lúcifer significa justamente LUZ, fogo, iluminiação, conhecimento
(progressão concreto-abstrato). Prometeu deu o fogo (o conhecimento) aos
homens para se vingar dos deuses, assim como Lúcifer deu o fruto (o
conhecimento) para os homens para assim se vingar de Jeová. Lúcifer
liberta a humanidade da ignorância, da condição de escravos ingenuos que
viviam sob o cativeiro de um Senhor para se tornarem livres como
deuses, senhores do seu próprio destino e transformadores da natureza
através do trabalho (esse ponto é crucial, Deus "pune" os homens com o
trabalho porém Marx observa bem que o trabalho é processo pelo qual
homem cria e transforma a natureza e a sí mesmo, ou seja, é praticamente
um poder divino, ser senhor do próprio destino). Falando em termos
gnósticos, Deus é o demurgo que criou o mundo material e aprisiona almas
nos mesmos (ele te faz temer a desgraça, o inferno, isso e aquilo),
sendo que Lúcifer liberta as almas fazendo com que elas se
auto-determinem ao invés de se escravizarem, que assumam uma coisa
"espiritual" que é o conhecimento, a iluminação. Aliás, a queda Lúcifer
representa isso - ele renuncia ao mesmo tipo de escravidão se tornando
consciente de sí mesmo, adorando a sí mesmo e não a seres externos..
Marx na famosa "Introdução a Crítica do Filosofia do Direito de Hegel"
(onde ele fala que a religião é ópio de povo) faz uma revolução
luciferiana e copernicana (o "sol" muda de posição) ao propor que o
homem se liberte das alienações e tenha como prioridade antes de tudo a
sí mesmo, que o homem fez deus e não o contrário; "quanto mais o homem
adora algo fora de sí mais perde de sí mesmo"; que o humanismo primeiro
se manifesta na forma de ateísmo, depois na forma de comunismo.
"And if you listen very hard
The tune will come to you at last.
When all are one and one is all
To be a rock and not to roll."
Escute
muito bem o canto dos pássaros, da flauta de Pan. Ultrapassado o
"Abismo" chega-se a "Binah", a ordem (rock), a unidade em contraposição
ao Caos (roll), visto que a matéria se caracteriza por ser dinâmica e
permanementemente em movimento (vide "Dialética"), ao passo que o
espirito é perene. E aquele que persiste no caminho, na sua Vontade,
deve ser como uma rocha que não rola com as forças exteriores - e aquilo
que ele conquistou assim será sólido. Para a Gnose no final nos
tornamos "Um", tudo, Deus, ai já não estaremos mais evoluindo, seremos
"fixos", teremos chegado ao fim da escada. É importante esclarecer que
existem duas "tendências" na Gnose, uma "cristã" (ascética) e outra
"satânica"(onde Jeová é o Demiurgo). A primeira consiste em afastar-se
dos pecados e a segunda em "esgota-los" cometendo-os. É um tanto claro
que um discipulo de Crowley (como Crowley) estivesse ligado a segunda.
Por que "Stairway To Heaven" é o melhor rock já escrito?
"Stairway
To Heaven" expressa o brilho, o potencial de cada alma humana e a
vontade de ser livre. Ele atinge a própria centelha divina, a pneuma. A
música começa lânguida, melancòlica, sentimental, passa para um nível
sensual para no fim chegar a um frenesi que parece colocar o ouvinte num
nível espiritual, separado do restante de forma transcendental - ela
cumpre sua função de "escada para o Paraíso", realiza a Gnose, a música
acompanha a letra e o ápice final expressa perfeitamente em forma
musical o significado da letra. Não existe outra música de tamanho
significado com este fenomenal alcance. Os Beatles não compuseram uma
música assim e "Bohemian Rhapsody" é só um modelo, incrível claro, de
opera rock. "Stairway To Heaven" é a expressão dos clamores da
libertação da alma humana, por isso é tão apelativa.